Filipe Antunes dos Santos é um homem multifacetado que não se conforma em passar pelos momentos. Mais importante que isso é reflectir sobre eles, por muito insignificantes que pareçam à primeira vista, e transcrever esses pensamentos no papel para “desassossegar os leitores”. No auge dos seus 84 anos, este pelmanense recusa-se a sair de cena. “Não sou capaz de parar”. Por isso, depois de uma vida cheia que o levou a correr um pouco do mundo, dedica muito do seu tempo à escrita e ao ponto de cruz. “Escrever é uma paixão” e o ponto cruz é outra, tanto que “já tenho quadros debaixo da cama e atrás das portas”, diz em tom de brincadeira. Os dias serenos do presente contrastam com os dias frenéticos de outros tempos, sobretudo da época em que foi presidente da Câmara Municipal de Alvaiázere. Teve uma vida cheia, na qual foi padre, autarca, professor e agora é escritor e artesão. A sua última obra foi apresentada há poucos dias. Fomos conhecê-lo…
Filipe Antunes dos Santos nasceu a 13 de Setembro de 1933, em Pelmá (Alvaiázere), no seio de uma família modesta. Aos treze anos ingressou no seminário onde tirou o Curso Teológico. Foi padre durante sete anos em Ansião. Contudo, “certas incompatibilidades” obrigaram-no ao afastamento, por isso legalizou a sua situação perante a Igreja e casou catolicamente. Começou a dar aulas e ingressou na Universidade de Coimbra onde se licenciou em História. Pelo meio, ruma a Lourenço Marques (Moçambique), mas por pouco tempo. Mais tarde, concorreu e entrou na Universidade de Nancy-Metz (França) como Leitor de Português. Uma experiência que também não durou muito tempo: “foram dois anos, mas eram para ser quatro”. “Sozinho não me sentia bem, por isso resolvi suspender o contrato e voltar”, disse, argumentando que “sou uma pessoa muito saudosista ou não fosse eu português”.
Autarca em “tempos difíceis”
“Por coincidência, convidaram-me para ser presidente de uma nova Comissão Administrativa da Câmara de Alvaiázere, porque a primeira Comissão que saiu do 25 de Abril autodestruiu-se”, um desafio que “com bastantes reticências acabei por aceitar”. “Tenho a honra de dizer que fui o primeiro autarca eleito democraticamente em Alvaiázere, cargo que desempenhei durante nove anos, mais um ano como presidente da Comissão Administrativa”, congratula-se Filipe Antunes dos Santos, lembrando que aqueles “foram tempos difíceis, porque não havia meios”, mas “tive a sorte do povo estar tão carenciado, que qualquer coisa que eu pedisse, eles acediam”. “Modéstia à parte, quem me conheceu na altura, diz que fui um grande autarca”, mas também “vivi para o povo”, afinal “vim do povo, não nasci num berço acolchoado, por isso vivia muito os tempos difíceis do povo daquela terra, que felizmente hoje está muito melhor”.
“Cheguei a um concelho onde não havia água, nem electricidade, nem estradas”, recordou o ex-autarca, constatando que “fizemos pequenos milagres” num tempo em que “era tudo com comparticipação do Estado”, pois ainda “não havia obras financiadas pela CEE”. Mesmo assim, “fez-se muita coisa”, “quando saí praticamente todos os lugares de cada freguesia tinham um caminho para aceder de carro e quase todo o concelho tinha água ao domicílio”, mas para isso foi preciso “pedir, pedir, pedir e insistir, insistir, insistir”. Tanto que “ganhei dos autarcas vizinhos a alcunha de pedinte ou chorão”. Até “o presidente da Assembleia Municipal, a dada altura, disse em tom pejorativo que eu era um furacão que chegou a Alvaiázere”. Comentários que Filipe Antunes dos Santos recebeu como elogios, afinal quando chegou ao Município de Alvaiázere deparou-se sem “nenhuma estrutura camarária, sem pessoal, nem nada”. “Não tinha ninguém, era eu que tinha de andar no terreno a ver as obras e a falar com as pessoas e sempre no meu carro”, por isso considera que a exigência da função “não tem comparação” com os dias de hoje, todavia “gostei mais desse tempo”.
Da autarquia para as salas de aula
Terminada a vida de autarca, continuou a de professor. Voltou para Ansião e mais tarde concorre para Coimbra, onde se manteve até se reformar em 1996. Enquanto docente, assegura que “sempre fui respeitado”, porém “não fiz milagres, mas fui um professor que tentei viver para os meus alunos e ensiná-los com os métodos que tinha”.
Quase duas décadas após deixar o ensino, não tem dúvidas: “a escola mudou, mas mudou mal ou não evoluiu como devia, porque não acompanha a evolução do mundo e as exigências da juventude”. Filipe Antunes dos Santos considera que é preciso reflectir sobre os problemas de educação. Ele próprio já fez isso, passando esses pensamentos para o seu penúltimo livro “Na mochila dos 14”, onde transcreve “dez cartas sobre um episódio que aconteceu numa escola e que adaptei à minha maneira para dizer o que penso sobre a educação”. Aliás, para o autor “este livro não é a última palavra sobre problemas de educação, mas é uma obra que, na minha opinião, devia ter chegado a mais mãos para servir de ponto de partida para uma reflexão sobre o problema da educação”.
“Escrever é uma paixão”
Não descurando tudo aquilo que já fez ao longo da sua vida, Filipe Antunes dos Santos diz que “a partir do dia em que saí da Câmara Municipal e sobretudo quando me reformei, tive a sorte de começar a fazer aquilo de que gostava: escrever”. Uma paixão que acumula com outra: a do ponto de cruz.
Mas falemos da escrita. O interesse pela literatura surgiu ainda na escola: “tive a sorte de ter alguns bons professores”, referiu, adiantando que “talvez por uma questão de formação, habituei-me a reflectir sobre os problemas e as suas soluções”, mas também “fui um bocadinho rebelde ao recusar-me pensar pela cabeça dos outros”.
Enquanto escritor, Filipe Antunes dos Santos estreou-se em 1987 com a obra “Tons que trago em mim”. Até aos dias de hoje já publicou 16 livros. Poesia, prosa, contos, ditados populares, literatura de viagens e ensaios de etnografia e de etnologia completam a sua produção literária. O último livro foi apresentado no passado sábado (27), em Ansião. “Tons de um aparo comprometido” junta numa mesma obra um conjunto de poemas, onde “cada verso vem de dentro, como se fosse uma tonalidade de mim” e cujo “aparo associo a mim”, afinal a caneta “escreve o que eu lhe ditar e obedece ao meu pensamento comprometido na esperança de um mundo melhor”.
E já começou a escrever o próximo livro? “Não queria dizer, mas ando a querer desassossegar muita gente”, revelou, sem ter certeza de que as páginas que está a escrever possam ir para as bancas, pois a história envolve a igreja e “eu não quero guerras com a igreja”. “Um sonho estranho” é o título provisório de um livro que conta a história de um pai alentejano que teve um filho a que deu o nome de Célio, mas era para ser Martinho. Certo dia o pai sonhou que o filho se tornara Papa, mas ficou aterrorizado ao perceber que a Interpol e a CIA andavam atrás dele. Numa viagem papal, o filho pega nos comandos do avião e desaparece sem ninguém saber o destino e o propósito da fuga. Esses, tal como para onde quis levar a igreja, só saberemos quando o livro sair, se sair…
Novo livro interpela vários sentidos
“Tons de um aparo comprometido” é o título do último livro de Filipe Antunes dos Santos, que foi apresentado na tarde do passado sábado (27), no âmbito da programação da Feira dos Pinhões de Ansião.
Segundo o autor, “este é um livro multifacetado”, que está dividido em sete capítulos. O primeiro mostra o significado de poesia para o autor, o segundo apresenta a “fruta do tempo”, o terceiro tem “o Papa Francisco como substrato”, o quarto é dedicado à mãe (do autor e dos seus filhos), o quinto fala das crianças, o sexto aborda o Natal e o sétimo junta “salpicos” de várias temáticas.
“‘Tons de um aparo comprometido’ poder-se-á até considerar um livro autobiográfico”, considerou João Patrício, amigo do autor, na apresentação da obra. “Filipe Antunes dos Santos conjuga neste livro várias emoções, interpelando os sentidos de um modo soberbo”, realçou aquele ansianense, constatando que “se a poesia é para comer, como o autor refere citando Natália Correia, este livro sacia-nos a alma”.
“Neste livro arrebatou-me o capítulo ‘Mãe’”, confidenciou João Patrício, que vê “Filipe Antunes dos Santos como um mago das palavras que trespassa do ilogismo doce até à denúncia social, com a mesma e única habilidade de agarrar o leitor”.
O autor conta já com 16 livros “inteligentes, desprovidos de ódio, irónicos por vezes e sempre discretamente afectuosos”, considerou João Patrício, constatando que Filipe Antunes dos Santos “escreve para desassossegar e escrever para desassossegar trespassa em toda a sua obra”. Além disso, “escreve para denunciar”, afinal como o autor diz no livro: “procuro a palavra boa/ a que faz germinar a esperança em novo dia/ para escrevermos a mudança”.
Enfim, “podemos afirmar que a poesia deste autor tem uma função terapêutica”, sendo ao mesmo tempo “aconselhadora e apaziguadora do espírito”, concluiu João Patrício.
CARINA GONÇALVES
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