Não raras as vezes somos brindados com imagens nas redes sociais que retratam a beleza natural de Sicó. Porém, de vez em quando, somos também confrontados com crimes ambientais que destroem a paisagem e o património local. A história já não é nova e voltou a repetir-se há poucos dias no concelho de Alvaiázere. A abertura de dois estradões numa zona localizada em plena Rede Natura 2000 foi, alegadamente, a justificação para destruir parte de “um património extraordinário”, lamenta o geógrafo João Paulo Forte, que já denunciou os crimes ambientais ao Serviço de Protecção da Natureza e do Ambiente (SEPNA) da GNR. As autoridades já se deslocaram aos locais no final da semana passada e estão a investigar os delitos.
A história conta-se em poucas palavras. Alguém se lembrou de alargar dois caminhos, com pouco mais de um metro de largura e delimitados pelos característicos muros de Sicó, localizados em plena Rede Natura 2000. Para isso, destruíram os muros e espalharam as pedras ao longo dos respectivos caminhos, numa extensão de mais de 500 metros.
Os dois caminhos, que fazem parte de trilhos muito utilizados por ciclistas e caminhantes, foram transformados em “dois estradões cobertos pelas pedras dos muros”, que “não permitem a passagem nem de carro, nem de bicicleta”, descreve um habitante, que prefere ficar no anonimato. “Até a caminhar temos de ir com atenção, de pedra em pedra, para não nos desequilibrarmos”, conta o morador, que se deparou com aquele cenário, logo no início do mês, numa manhã de caça.
O primeiro estradão foi descoberto em Casal Além, numa rua onde há várias casas de pedra, todas elas em ruínas. O segundo caminho situa-se na Mata e faz parte do “Percurso Pedestre Megalápias”, pois ali perto existe um campo de megalapiás (formas cársicas de grandes dimensões). Em ambos os casos, “alagaram os muros, puseram as pedras para o meio do caminho, mais ou menos a direito, mas mesmo assim sem permitir a passagem”. “Não percebemos qual será realmente o objectivo daquilo, até porque, a menos de 100 metros do primeiro caminho destruído, passa um estradão grande, o chamado corta-fogo”, adianta aquele alvaiazerense, afastando a ideia de que a finalidade seria o alargamento de caminhos para prevenção de incêndios.
“Intervenções despropositadas”
Para João Forte, aquelas “intervenções completamente despropositadas” afectaram “características da paisagem, muito valiosas dada a sua especificidade e raridade”, e levaram à destruição de “um recurso natural de elevado valor pedagógico, ambiental e turístico”, que “será impossível recuperar ou reconstituir”. “A paisagem local ficou mais pobre, mais degradada e mais fragmentada”, pois “destruíram-se novamente elementos relacionados com o património histórico e arqueológico, etnográfico, construído e natural que eram susceptíveis de valorizar no quadro de uma estratégia de desenvolvimento local”.
“Não há planeamento, gestão ou mesmo plena consciência dos valores ali existentes”, acusa o geógrafo, lamentando que “em vez de se preservar todos estes recursos, num muito desejável quadro de desenvolvimento sustentável, continua a insistir-se numa fórmula de destruir primeiro e ver depois”.
Afinal, “em termos de património geológico e geomorfológico, a integridade do campo de megapaliás foi novamente posta em causa com este estradão”, que foi aberto numa “área onde existe aquele que será provavelmente o maior e mais belo campo de megalapiás da região de Sicó”, sendo por isso “um recurso turístico muito valioso”.
Além disso, “estas duas intervenções são mais um contributo negativo no que concerne à gestão dos recursos aquíferos, já afectados pela laboração da pedreira ali ao lado e de uma central betuminosa desactivada temporariamente há poucos anos”, explica João Forte.
“Em termos arqueológicos, aquela área em particular tem importância significativa, nomeadamente pela existência de um Castro (povoamento arqueológico) a poucos metros do primeiro estradão que rasgaram na base da colina”, refere, adiantando que a poucos metros do segundo estradão foi descoberto, há poucos anos, por “dois conhecidos arqueólogos”, “um machado do neolítico, prova que poderá haver ali muito mais do que se esperaria” e que provavelmente “nunca saberemos que existiam”.
Já em termos de património cultural e etnográfico, “estas duas intervenções vêm diminuir ainda mais a distância de caminhos tradicionais, murados, os quais representavam uma herança importantíssima para a identidade local”.
Impossível de recuperar
E agora o que é que pode ser feito para minorar os prejuízos ambientais e patrimoniais? “É difícil de fazer uma análise simples e em cima do joelho”, mas “estas duas intervenções são apenas mais duas a juntar a outras feitas nos últimos anos”, que num “processo cumulativo” têm um “impacto muito negativo no património daquela área e em termos ambientais”.
“Infelizmente o mal está feito”, lamenta João Forte, realçando que “parte importante dos efeitos e prejuízos ambientais não são passíveis de minorar”, tal como não é possível recuperar o património destruído, como “muros e caminhos seculares, lapiás, entre outros”.
Todavia, é fundamental “o apuramento de responsabilidades”, defende o geógrafo, esperando que finalmente façam “a inventariação de todos os recursos patrimoniais, a sua protecção efectiva e a sua valorização económica”, tal como propôs há 11 anos na sua tese de mestrado, que focava também aquela área em particular.
O TERRAS DE SICÓ contactou o SEPNA, que confirmou a denúncia e a deslocação aos locais, mas remeteu explicações para um e-mail que não chegou até ao fecho desta edição. Já as tentativas de contacto ao presidente da Junta de Freguesia de Alvaiázere, para obter esclarecimentos sobre o assunto, mostraram-se infrutíferas.
CARINA GONÇALVES
Todos os direitos reservados Grupo Media Centro
Rua Adriano Lucas, 216 - Fracção D Eiras - Coimbra 3020-430 Coimbra
Powered by Digital RM